Livro da vez

A incrivel e triste histórias da cândida erêndira e sua avó desalmada
Gabriel Gárcia Márquez


A curta e fantástica narrativa de Márquez suscita reflexões sobre a inversão do
papel da avó, tomando por base o que está apregoado culturalmente, dentro das mais
diversas classes sociais. Contrariando a relação avó/neta normalmente envolvida por
harmonia, aura de afeto, proteção acalentadora, o conto revela o triste mundo da
cândida Erêndira, a neta peregrina.

A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada ocupa um
lugar de destaque na literatura latino-americana, além de revelar um conflito
intergeracional representado pelo relacionamento parental avó/neta em nada parecido
com o habitual narrado nos contos de fada. Esta novela – de 1972 – está inserida no
livro homônimo, juntamente com outros seis contos. A história de Erêndira é tão
conhecida quanto a saga dos Buendía, de Cem Anos de Solidão1, do já citado autor,
entretanto o destaque desta narrativa confere a García Márquez o papel de um dos
maiores escritores alegórico-fantásticos da literatura universal.

Na triste história, o escritor colombiano narra, sem eufemismos, as desventuras
de uma jovem de 14 anos corrompida, escravizada e prostituída pela própria avó. A
desalmada senhora responsabiliza a neta pelo incêndio que destruiu a casa em que
viviam e condena a jovem a se prostituir por mais de oito anos para pagar o "prejuízo
de mais de um milhão de pesos", decorrente do incêndio. A possibilidade da frágil e
delicada adolescente se livrar da pena surge na figura de Ulisses - um viajante astuto
e apaixonado - que representa a esperança e o sonho de liberdade para a neta
explorada.

A história de uma avó cruel vingativa e terrível do universo literário e, ao mesmo
tempo, uma das mais populares está perpetuada na obra de Márquez que, talvez pelo
caráter paradoxal tenha merecido um olhar cinematográfico e ganhou as telas do
cinema, em 1983, pelas lentes do diretor Ruy Guerra. O filme co-produzido pelo
México, Alemanha e Portugal, protagonizado pela brasileira Cláudia Ohana no papel de
Erêndira recebeu o prêmio de melhor fotografia pela Academia Mexicana de Artes y
Ciências Cinematográficas 



A triste história de Erêndira traz reflexões sobre conflitos intergeracionais, o
processo cultural e a formação da identidade, a violência e a exploração sexual, a
violência doméstica, a ausência de valores humanos e sociais – temas atuais e
polêmicos. Porém o que mais chama atenção é o fato de todos esses fios se soltarem
a partir de uma linha genealógica convencionalmente harmônica, pacífica. Nas mais
diversas culturas, o relacionamento entre avós e netas é marcado pelas lições e pelas
partilhas: a avó, como mediadora entre a mãe e a filha, ensina e encoraja a neta a
buscar a própria identidade e a autorrealização. No mundo de feições apocalípticas,
precisamos cultivar o arquétipo das avós-mães, fadas, anjos.